Rubem Alves
Se você está planejando fazer uma reforma na sua casa, aqui vai o meu conselho: marque horário no "consultório de arquitetura" do arquiteto argentino Rodolfo Livingston. Fiquei sabendo sobre ele através do um artigo "O homem, a casa e a felicidade", publicado na revista Mais Vida ( jan. 97). É um arquiteto fora do gabarito, especializou-se na reforma de pequenas residências, e se auto define como médico de casas, razão para o nome de "consultório" que deu ao seu escritório.
Quando a gente vai ao médico é porque alguma coisa está doendo de um jeito ou de outro. Mesmo quando se vai só para fazer um check-up, sem dor física alguma - há uma dor na cabeça: medo de que, secretamente, sem nenhuma dor, uma doença tenha se alojado no corpo. "Onde é que está doendo?" - essa a pergunta com que se inicia qualquer consulta, mesmo que não seja dita de forma clara. Pois é assim que Rodolfo Livingston inicia suas "consultas" : "Onde é que sua casa está doendo?" As casas podem doer, podem fazer amor. São muito mais que estruturas de cimento, tijolos, portas e janelas. Formam um espaço - e esse espaço se constitui num prolongamento do corpo. É por isso que elas "doem". Não basta que a casa seja feita de forma perfeita, do ponto de vista técnico engenharial, todas as paredes na vertical, todos os cálculos de viga corretos, casa que vai durar 150 anos. O fato é que há casas que nos fazem sentir bem, e outras que nos fazem sentir mal. Faz tempo, vi uma fotos da casa da Xuxa. Fiquei horrorizado. Mais rica não poderia existir. Mais cheia de solidão não poderia existir.
As casas, assim, podem ser vistas por dois ângulos diferentes: a casa em si mesma, objeto físico, e a casa como espaço que faz algo às pessoas que moram nela. A casa, em si mesma, objeto físico, é entidade científica. Nas faculdades de engenharia se aprende a ciência de construir casas. As paredes se esguem com fio de prumo. As vigas são feitas com cimento, ferro e matemática. As tintas se fazem com química. Os princípios cientificos para a construção das casas são universais. Valem para todas as casas, de todos os tipos, em todas as épocas, em todos os lugares. Quem sabe a ciência da construção de casas sabe construir qualquer casa.
A casa em relação às pessoas que moram nela, ao contrário, é casa como objeto de prazer ou dor. Para isso não há ciência. Nesse momento, estou ouvindo um CD de Negro Spirituals, que eu amo: "Sometimes I feel like a motherless child": por vezes eu me sinto como uma criança sem mãe... Sinto vontade de chorar. Esse CD foi produzido pela ciência. E com certeza há milhares de Cds iguais a ele dando prazer a outras pessoas. A ciência realiza feitos maravilhosos! Mas é possível que o técnico que o produziu não goste de "spirituals" - que prefira rock. Assim, a música e a letra que me comovem o deixam frio, talvez irritado. A técnica de fazer CDs pode ser ensinada de forma científica. Mas o "gosto" pela música - note que "gosto" é palavra tirada da gastronomia, ele se refere a uma "qualidade" que não pode ser explicada, dita, ensinada! - sim, o gosto pela música não pode ser ensinado de forma direta.
Se quero introduzir minha neta ao prazer dos "spirituals" eu tenho de me assentar com ela e dizer: "Fique quietinha, escute essa música que o vovô ama. Ela é muito bonita!" E aí, talvez pela contemplação do meu rosto, é possível que ela sinta o mesmo "gosto" que eu sinto. Isso vale para as casas. Há casas que me emocionam, que provocam a minha imaginação, eu gostaria de viver nelas. E outras, ricas, cheias de objetos de arte, me provocam um estranho sentimento de estar num espaço não humano.. O alemão tem uma palavra curiosa "unheimlich". "Heim" é lar. "Un" é a negação.
Tradução: sentimento de estar num espaço estranho, que não é lar. Há algo errado na casa produzida em série, igual para todos, do tipo apartamento grãfino ou casa de conjunto habitacional. Porque as pessoas são diferentes. Não são produzidas em série. Há, em mim, algo que nenhum arquiteto sabe, nenhum decorador sabe, nenhum paisagista sabe. A alma humana não pode ser conhecida "em geral", "cientificamente". Cada pessoa é única. Cada casa, portanto, tem de ser uma coisa única. A casa tem de ser a realização objetiva dos espaços que moram em minha memória poética. Hegel diria: "objetivação do espírito". Marx diria: " espelho onde podemos nos contemplar - e ficar felizes". Freud diria: "um sonho de amor tornado visível"...
Rodolfo Livingston dá um puxão de orelha nas faculdades de arquitetura e urbanismo. " Os estudantes nunca viram um cliente e, depois de formados, falam uma linguagem que só eles entendem. Elaboram projetos funcionais; não perguntam para a pessoa, durante a reforma, onde a casa dói. Eu utilizo um "sofrenômetro" e um "felizômetro" para ir entendendo o que é importante e o que não é, para que meu cliente se sinta bem".
Claro que ele está fazendo uma brincadeira. Não há aparelhos que possam medir o sofrimento e a felicidade. Como disse o querido Manoel de Barros "a ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não pode medir os seus encantos." E acrescenta " Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam."
Não há maneiras de fazer uma pesquisa objetiva, estatística, sobre o sofrimento e a felicidade. Porque sofrimento e felicidade não são objetos. Sofrimento e felicidade são qualidades de relações. Para se saber sobre relações é preciso conhecer a arte de adivinhar. Essa arte é rigorosamente proibida aos cientistas. Na verdade, eles nem sabem do que se trata. As ciências físicas pesquisam objetos. Conhecem objetos. Tudo ignoram sobre qualidades, isso é, o sentimento de felicidade ou infelicidade que um objeto produz numa pessoa.
A ciência produz os conhecimentos de química necessários para a fabricação de tintas de todas as cores. Coisa muito boa. Quando compro uma lata de tinta quero ter a certeza de que ela é da mesma cor da tinta que já comprei. A ciência garante isso. Ela sabe receitas precisas para a reprodução de objetos. Mas ela nada sabe sobre as reações de sofrimento ou felicidade que uma cor pode produzir. De que cor vou pintar a parede? Roxo? Preto? Rosa? Azul? Amarelo? Abóbora? Quando essa pergunta é feita saimos do campo da objetividade e entramos no campo da qualidade: o que a cor faz comigo. a relação do objeto comigo.
Um pesquisador enviou um projeto de pesquisa à FAPESP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Área médica. Propunha uma pesquisa qualitativa. Não lhe interessavam dosagens hormonais, estruturas anatômicas, metástases cancerosas: objetos que podem ser conhecidos quantitativamente. Interessavam-lhe sentimentos, essas "coisas" escorregadias que têm a ver com o sofrimento e a felicidade dos homens. Recursos para a sua pesquisa foram negados. Não sei se o projeto era bom ou não. O que me interessa são as alegações do assessor. Elas revelam muito. Transcrevo duas delas:
"1. Pesquisas qualitativas são extremamente vulneráveis a viés de todos os tipos, dificultando sobremaneira a confiabilidade, validade, e reprodutibilidade do estudo (que é o objetivo maior da investigação científica).
2. Esse trabalho dificilmente seria aceito para publicação em uma revista científica internacional. Penso que os recursos da FAPESP seriam mais adequadamente utilizados em pesquisas cujos resultados sejam confiáveis, válidos e reprodutíveis."
Acho que o assessor, quem quer que tenha sido, não marcaria hora no "consultório" do Rodolfo Livinston. Ele preferiria uma casa construida em série em algum conjunto habitacional.
Que pena que os cientistas proibam a investigação das coisas que trazem sofrimento ou felicidade aos homens!
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