Rubem Alves
Quero seduzir você a jogar um jogo de palavras chamado filosofia. Você não se interessa por filosofia, nunca estudou filosofia, nada sabe sobre os filósofos. Filosofia, coisa chata e complicada. Compreendo. Mas as suas alegações simplesmente significam que você não tem condições para ser um professor de filosofia. Professores de filosofia têm de dominar uma tradição.
Mas note: o homem que inventou o alfabeto era analfabeto. O primeiro filósofo começou a filosofar não tinha atrás de si uma bibliografia filosófica. Jorge Luis Borges, quando seus alunos lhe pediam uma bibliografia, respondia: " Não é preciso bibliografia. Afinal Shakespeare desconhecia completamente a bibliografia shakespeareana." Excesso de informações perturba o pensamento. "Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare" : assim dia o Manoel de Barros. ( É poeta-criança. Criança brinca com brinquedos; poeta brinca com palavras.
Essa afirmação do poeta não é científica.
Não foi produzida por um método. Ela é mágica. Quebra feitiços. Faz voar idéias plantadas.) Frequentemente os professores de filosofia pensam tanto o pensamento de outros que acabam por não ter pensamentos próprios.
Comecemos, então, por compreender que o filosofar não é conhecimento de uma tradição de pensamento. O filosofar é um jeito de fazer dançar as idéias. Mudo minha pergunta inicial: " Vamos dançar?"
Muitas são as danças: minueto, marcha, lambada, bolero, samba, tango... As danças, todas elas, se parecem com os jogos. Futebol, tênis, frescobol, volibol, xadrez, dama, buraco,mau-mau, poquer, truco: todos são jogos. Jogos têm têm regras fixas e precisas. No jogo existe uma "dança" entre a liberdade e a regra fixa. A beleza do futebol está precisamente nisso: a brincadeira da liberdade do jogador dentro de um quadro de regras fixas.
Um jogo, como a dança, depende de duas coisas precisamente definidas. As "entidades" do xadrez são as peças: peão, dama, bispo... As regras são os movimentos possíveis das peças. As entidades da valsa são um homem, uma mulher, um ritmo. Os movimentos do homem e da mulher são definidos. Eles devem formar um par: dançar quase abraçados. É o par que deve se mover segundo o ritmo da valsa. As marchas não exigem pares. Cada um pode dançar sozinho, como nos bailes de carnaval. Mas o corpo deve se mover num ritmo binário. Já a dança flamenca é outra coisa. Pode ser dançada por uma única dançarina ou por um par - sendo que homem e mulher não ficam abraçados e executam evoluções por conta própria .
Sem que disso nos apercebamos, ao falar estamos fazendo jogos de palavras. Numa outra crônica, muito antiga, descrevi dois jogos constantemente jogados por casais: o tênis e o frescobol. O objetivo do jogo de palavras "tênis" é tirar o outro da jogada. Fim rápido. Ejaculação precoce. O objetivo do jogo de palavras "frescobol" é manter o outro na jogada. Fim adiado. Vai e vem prolongado. O bom não é a chegada; é a travessia. Há uma infinidade de jogos, todos eles com regras precisas e fixas.
A piada é um jogo cujo objetivo é produzir o riso. Sua estrutura é fixa. Consta de um discurso que cria uma expectava, um suspense, que é repentinamente interrompido por uma rasteira seguida de um fim inesperado. Nesse momento acontece o riso. A lamentação é um outro jogo. Consta de um relato de sofrimentos por que a pessoa passou, cujo objetivo é provocar sentimentos de admiração em quem ouve o relato. Mas isso nunca acontece porque a outra pessoa, ao término do relato da primeira, diz sempre: " Mas isso não é nada!" - começando a seguir o relato dos seus próprios sofrimentos. Contou-me uma paciente que, em certa região do Brasil, esse é o jogo predileto das mulheres pobres, cujo objetivo é ter a glória de ser aquela que "sofreu mais."
Há uma infinidade de jogos de palavras: a poesia, a sedução, as brigas de casais, os discursos dos políticos, a reza, a psicanálise, os comerciais, a aula ( Sim! a aula! Os professores deveriam parar para pensar no jogo que estão obrigando seus alunos a jogar! Uma das características desse jogo é que o aluno é obrigado a aceitar as "entidades" com que devem jogar ( disciplinas e currículos) e as "regras" do jogo que a escola impõe. Com alguma frequência o professor não quer jogar o jogo que a direção da escola e as burocracias governamentais lhe impõem: mas é obrigado a jogar, sob pena de perder o emprego. Nessa situação só lhe resta um recurso: a burla.
A burla é uma importante possibilidade presente numa grande quantidade de jogos. Futebol, por exemplo, está cheio de burlas.
Já no volei as burlas são praticamente impossíveis.
Não há formas de burlar no xadrez mas a graça do truco é, precisamente, a burla. As aulas de português são um jogo cujo objetivo é ensinar os alunos a jogar a jogo da linguagem de acordo com as regras oficiais: usar as palavras certas e a gramática certa.
Nas aulas de português ensina-se o jogo da linguagem sem burlas, como se ele fosse idêntico ao jogo do xadrez. Mas a linguagem se parece mais com o truco.
A poesia e a literatura são a arte de burlar as regras da linguagem.
Para que? É só perguntar a um filósofo Zen que ele vai dar a resposta...
Filosofia é um jogo de linguagem, um jeito de usar as palavras. Na filosofia a gente usa as palavras para entender as palavras.
Wittgenstein definiu esse jogo de palavras chamado filosofia como "uma batalha contra o feitiço da nossa inteligência por meio da linguagem".
Frequentemente as pessoas ficam emburrecidas em decorrência das palavras que ficam grudadas na sua inteligência. Tenho notado, por exemplo, que a palavra "Deus" ( vejam; eu disse "a palavra" - não disse "Deus". Deus está além das palavras.) é uma das palavras que mais se agarram à inteligência, fazendo com que as pessoas parem de pensar.
Quem fica enfeitiçado, é bem sabido, entra em transe, começa a dançar e não para. Dizem que a madrastra da Branca de Neve dançou até morrer. É fácil identificar a pessoa cuja inteligência está enfeitiçada por uma palavra: ela só sabe dançar uma dança só. E quem só sabe jogar um jogo de linguagem fica burro. E chato. Porque a inteligência acontece precisamente nos saltos entre danças diferentes.
É preciso notar que o que enfeitiça é sempre uma coisa "fascinante". "Fascinio" - no Latim fascitatio - que dizer "encantamento mágico", " feitiço". O símbolo mágico do objeto fascinante: a maçã - coisa linda, deliciosa, desejável - lugar do conhecimento.
A ciência é coisa linda, deliciosa, desejavel, lugar do conhecimento, eu não poderia viver sem ela. Mas, como a maçã, ela tem um poder enfeitiçante. À medida em que dá conhecimento de um lado, ela retira conhecimento do outro. Volto ao Manoel de Barros: "A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir os seus encantos."
Daí o poder enfeitiçante- paralizante da fórmula "Isso não é científico" . Meu amigo, aquele que invadiu meu escritório, viu paralisado o canto do seu sabiá, quando essa fórmula lhe foi pronunciada pelos feiticeiros da ciência. Veio em busca de socorro. Queria as palavras para quebrar o feitiço.
É o que comecei a fazer e irei fazendo. Porque amo muito a ciência. Quero que os pescadores coninuem a pescar e a preparar os peixes deliciosos que eles pescam no rio da realidade. Mas quero que os pescadores sejam capazes também de ouvir o canto do sabiá que nenhuma rede pode pegar.
Por vezes o canto do sabiá é mais impostante que um peixe que se pesca. Ou, para quem não entende: por vezes um poema, uma sonata, uma quadro, são mais importantes para a vida e a alegria que artefatos de saber e tecnologia. Precisamos dos dois: do conhecimento e da beleza.
Mas beleza não é científica.
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