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18/05/2010

SÉRIE X INCLUSÃO

Série não rima com inclusão


José Pacheco

Deficientes são as práticas escolares que se baseiam no pressuposto de que somos todos iguais, que tornam homogêneo o que é diverso, mascarando ou negando as diferenças Jovens "diferentes" acorrem às escolas por via de um processo de massificação ou na justa reivindicação da prática de direitos humanos fundamentais.

Contudo, ainda há quem trate os "desiguais" como se fossem iguais. E quem me confidencie vivências que
confirmam processos de exclusão: "A tristeza vem quando me deparo com a realidade das nossas escolas. Pergunto-me por que será que muitos professores resistem tanto a uma pedagogia diferenciada, que gere inclusão, quando, para mim e para tantos outros professores, a sua pertinência é tão óbvia".

Há mais de meio século, Élise Freinet colocava a seguinte questão: "Como será uma aula na qual os alunos não farão, todos ao mesmo tempo, a mesma coisa?

Como regular todo o trabalho escolar?".

Élise Freinet tinha consciência da obsolescência da organização do trabalho escolar centrada em aulas dadas para um (inexistente) "aluno médio", em tempos iguais para todos.

Preocupava-se com a imposição de ritmo único a alunos que denotavam diferentes ritmos. E, há uma década, um estudo "descobriu" que a maioria das escolas imputava o insucesso dos alunos apenas à sua origem sociocultural e à falta de formação dos professores. O estudo a que me reporto confirmou o óbvio: a predominância do método expositivo nas escolas, a disposição dos alunos em filas voltadas para o professor e o fato de que "não é visível a existência de estratégias específicas para potencializar a aprendizagem dos alunos com ritmos mais lentos".

Esse estudo concluiu que as práticas de ensino vigentes beneficiam alunos que acompanham, sem grandes dificuldades, ritmos intensos de lecionação e que a preocupação maior é a de preparar os alunos para fazer provas e exames.

Quem se preocupa com a impunidade dos que, ano após ano, "põem de lado" e "deixam para trás" os alunos que "não acompanham" o "ritmo da turma"? (Coloco os absurdos entre aspas.) Quem se preocupa com a impunidade dos que se outorgam "o direito de não querer mudar", quando sabemos que este não querer condena sucessivas gerações de alunos à exclusão e ao abandono?

Provavelmente, os adeptos do pensamento único vão desdenhar, recorrendo a uma metafísica da legitimação que se assenta no inquestionável princípio que diz que a culpa é do sistema, ou das "teorias das ciências da educação", "teorias" que os habituais detratores não sabem dizer quais sejam, ou onde tenham tradução prática. Em um ponto terão razão nos seus comentários: muitas escolas não dão resposta à diferença, porque (como é comum ouvir) "os professores não podem ocupar-se do resto da turma se o deficiente estiver a estorvar".

Não passa pela cabeça dessas pessoas que haja outros modos de organizar o trabalho escolar?

Não se trata de encaixar um "deficiente" (eu não utilizo essa denominação, mas é assim que os tratam) em dada turma para reduzir o número de alunos dessa turma, ou para produzir caricaturas de inclusão. A "diferença" é normal, não é deficiente. A sociedade é formada por identidades plurais, particularidades, especificidades. Anormal é pautar o trabalho escolar pela igualdade. Deficientes são as práticas escolares que se baseiam no pressuposto de que somos todos iguais, que tornam homogêneo o que é diverso, mascarando ou negando as diferenças.

A forma como se organizam muitas escolas não permite, efetivamente, dar resposta aos diferentes.Para que se concretize a inclusão, é indispensável a alteração do modo como muitas escolas estão organizadas. Para que a inclusão passe a ser mais do que um enfeite de teses, será preciso interrogar práticas educativas dominantes e hegemônicas. Será preciso reconfigurar as escolas. Quando serão postos em prática os princípios de escola inclusiva enunciados, há dez anos, na Conferência de Salamanca?

Quando se deixará de centrar o problema no aluno para centrá-lo em uma gestão diversificada do currículo?
Quando cessará a intervenção do especialista em um canto da sala de aula e se integrará esse especialista em uma equipe de projeto? Quando se concretizará uma efetiva diversificação das aprendizagens, que tenha por referência uma política de direitos humanos, que garanta oportunidades educacionais e de realização pessoal para todos?

Eu sei que é possível concretizar a utopia de uma escola que dê garantias de acesso e de sucesso a todos. na prática. E que haverá muitas maneiras de realizar a utopia. Também sei e afirmo (por maior desassossego que possa causar) que é impossível haver inclusão em escolas de professor sozinho na sala de aula, de sinal impondo ritmos únicos, e organizadas em séries. Série não rima com inclusão...

Sabemos que há muitos professores conscientes da falência do tradicional modelo de organização e de que urge reconfigurar as escolas para atenderem à diversidade. É urgente ajustar a gestão do espaço e do tempo escolar à medida de cada criança no ofício de aluno. Sem risco de redundância, repito: de cada criança! Não me preocupa poder ser considerado enfático, pois é preciso reafirmar que cada cada deve poder ser
Cada ser humano é único e irrepetível. "Quando cada cada for cada qual" e os professores deixarem de ensinar a todos como se fossem um só, quase todas as causas no insucesso estarão erradicadas.

A aceitação da diversidade exige o desenvolvimento de uma pedagogia diferenciada. A escola atual confronta-se com uma grande heterogeneidade social e cultural. Essa realidade implica uma outra concepção de organização escolar, que ultrapasse a via da uniformidade e que reconheça o direito à diferença. É preciso - e urgente! - agir no nível das práticas pedagógicas, das estruturas e organização das escolas.

De acordo com a declaração de Salamanca, os alunos com "necessidades educacionais especiais" devem ter acesso à escola normal, a qual deve acomodá-las em uma pedagogia centrada na criança capaz de atender às suas necessidades. Todas as crianças têm o direito de serem educadas em escolas predominantes, independentemente de suas deficiências ou de suas necessidades educacionais especiais (Unesco, 1995). Porém, muitas práticas educativas ainda denotam olhares sobre os "diferentes" alicerçados em oposições como normalidade/anormalidade, completude/incompletude. Refletem homogeneização e naturalização das diferenças mediante representações do que falta nos corpos, nas mentes, nas linguagens...

A teoria dos dotes não poderá continuar sendo álibi do sofrimento de professores e alunos. As causas socioeconômicas ou sociais não são as únicas. Também há causas de origem socioinstitucional. E as escolas somente poderão identificá-las à medida que os educadores tenham uma formação que lhes permita exercer sentido crítico relativo ao exercício de sua profissão. Aqui chegados, importa reconhecer o papel fundamental das instituições de formação inicial dos professores.

As escolas de formação qualificam os professores para oferecer uma educação de qualidade para todos?
Se assumirmos o princípio do isomorfismo na formação - o modo como o professor aprende é o modo como o professor ensina - custa crer que isso aconteça. A matriz universitária mantém-se cativa de modelos de formação em tudo contrários a uma idéia de inclusão. O multiculturalismo profusamente estudado em muitas faculdades ainda não logrou ir além do reconhecimento da diversidade como algo exótico, não
questionou a gênese das diferenças, os estereótipos e preconceitos de uma sociedade desigual e excludente.

Felizmente para os "desiguais", nem todas as universidades e escolas são "iguais". E eu acredito no potencial transformador dos professores que ousam interrogar práticas hegemônicas e reelaborar a sua cultura pessoal e profissional.
José Pacheco é mestre em Educação.


Referência: Ano VI - Nº 16 - Caminhos da inclusão - Março à Junho 2008
Do site
http://www.revistapatio.com.br/sumario_conteudo.aspx?id=200

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